sábado, 28 de outubro de 2017

Doclisboa '17: A Eloquência dos Arquivos de Cinema



Regressemos, então, ao Doclisboa '17. E de como o potencial historiográfico dos arquivos de Cinema e Televisão conheceu todo um novo fulgor por estes dias, ou não tivessem as expectativas geradas para a presente edição do Festival, aqui enunciadas na semana passada, sido inteiramente cumpridas.

Da experiência pessoal ao panorama geral político, três títulos destacaram-se na programação deste ano como exemplos acabados do exercício da justaposição de imagens de arquivo, sem narradores nem talking heads, com a elaboração de sentimentos, reflexões e incertezas que não só encontram novas leituras históricas, como também estão perfeitamente adequadas à realidade sócio-política contemporânea.



NO INTENSO AGORA parte dos home movies do seu realizador, João Moreira Salles, e das memórias que aquelas imagens de infância em Paris e no Brasil lhe suscitam, para escorrer em torno de eventos pivotais da segunda metade do Século XX — o Maio de 68, a Revolução Cultural de Mao Tse-Tung, a repressão soviética da Primavera de Praga — e respectivos efeitos sobre o nosso quotidiano.

No seu contexto formal, a "intervenção reflexiva" de João Moreira Salles ocorre inteiramente sobre o filme de arquivo. Desde a análise da psicomotricidade (slow motion, freeze frames, repetição...) do arremesso de uma pedra de calçada por um protestante no Maio de 68, passando pela minuciosa apresentação das origens do activismo de Daniel Cohn-Bendit, e almejando um conjunto de impressões, formuladas pelo cineasta, sobre o filme de um desconhecido grupo de cidadãos checos em convívio social, NO INTENSO AGORA é, simultaneamente, uma obra de perspectiva individual e colectiva.

A plenitude da narrativa histórica está completamente divulgada — e, a espaços, através de filmes verdadeiramente impressionantes captados por corajosos desconhecidos —, mas Salles nunca permite a sonegação de uma abordagem pessoal, tanto visual como na prosa da sua voz-off, dos acontecimentos realçados. E, por inerência, converte-nos em cúmplices de um passado revolucionário, utópico e de esperança, devorado pela conformada inércia do Homem ao longo dos últimos cinquenta anos.



Também de forma muito singular, é a partir do próprio acervo audiovisual da Guiné-Bissau que SPELL REEL constrói a sua metodologia e reflexão. Neste filme-ensaio de Filipa César (considerado por alguns críticos, de modo muito exacto, como "cinema arqueológico"), as quarenta horas de película, sobreviventes do calor da África Ocidental, negligência e Guerra Colonial, são um ponto de partida para a observação de como a formação histórica, e respectiva percepção colectiva, de um país pode brotar da visualização das imagens em movimento do seu passado.

De um arquivo cujo futuro de preservação e acesso público ainda permanece incerto (e isso ficou claro durante o Q&A, que procedeu à exibição do filme, com a realizadora), SPELL REEL destaca os momentos mais pragmáticos do processo de independência — incluindo o monetário — da Guiné-Bissau. O legado de Amílcar Cabral, a ideologia sócio-política do PAIGC, o percurso de cineastas guineenses (por exemplo, Flora Gomes ou Sana Na N'Hada, cujos filmes também são parte integrante daquele arquivo) formados em Cuba e breves apontamentos etnográficos são ecoados, no presente, por quem viveu aqueles acontecimentos e apresentados a gerações mais novas que não escondem o brilho de fascínio e curiosidade nos seus olhos.

Quando o filme termina, resta a sensação de que, nos dias que correm, é extremamente raro ver uma nação com tanto orgulho e desejo em conservar, sem olhar a constantes contrariedades políticas e económicas, um arquivo de Cinema como a Guiné-Bissau.



Os bons velhos tempos do videotape estão na génese de THE REAGAN SHOW, documentário que olha para a Administração Reagan (1981-1989) como uma era de puro "blockbuster político". Também inteiramente composto por imagens de arquivo — da CNN à NBC, mas com particular enfoque para a White House TV, constituída pelo próprio Reagan —, Pacho Velez e Sierra Pettengill detêm-se no circo mediático que aquele Presidente tratou de cultivar e incentivar.

Sem qualquer culto de personalidade à vista, a escolha das imagens salienta Ronald Reagan como homem convicto em seguir um "guião" em modo autopilot, num evidente elo de ligação ao seu passado em Hollywood, mas capaz de dominar as negociações mais intrincadas (nomeadamente, com Gorbachev).

Embora THE REAGAN SHOW não pretenda as mesmas implicações que outros filmes da mesma natureza (como é o caso do "corrosivo" SPIN) conseguiram formular, e se possa lamentar que eventos como a tentativa de assassinato perpetrada por John Hinckley Jr., as motivações e fundamentos do Reaganomics ou o Caso Irão-Contras conheçam pouco ou nenhum tempo de antena, o filme é mais um claro exemplo da eloquência do documentário histórico que possibilita aos arquivos "falarem" pelo poder do seu próprio conteúdo visual.

Imagens:
1 THE REAGAN SHOW, CNN Films.
2 NO INTENSO AGORA, Videofilmes Produções Artísticas Ltda.
3 SPELL REEL, Filmes do Tejo II.
4 THE REAGAN SHOW, pachoworks.com.

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