sábado, 3 de fevereiro de 2018

Remakes e a Memória Perdida do Cinema



Em artigo publicado na mais recente edição da revista Sight & Sound, Pamela Hutchinson1 presta elogio ao conceito intrigante do remake de filmes perdidos. A sustentar esta tese, a autora do artigo invoca dois argumentos que, no limite do silogismo generalista, destacam a reformulação de títulos considerados perdidos como uma oportunidade para "dizer algo de novo sobre o filme original" e "encarar, de forma criativa, a História do Cinema e os seus fantasmas".

Em bom rigor, e no seio da actividade cinematográfica, o remake de filmes perdidos não se constitui, propriamente, como novidade. A prática foi comum nas primeiras décadas do Século XX — sobretudo, pela destruição voluntária, por parte das produtoras, de cópias de filmes para a extracção da prata contida no nitrato —, durante o qual se produziram versões sonorizadas de títulos desaparecidos do período mudo.

Numa abordagem mais criativa, e Hutchinson salienta-o no seu texto, as experiências de Guy Maddin, em colaboração com Evan e Galen Johnson, na recriação de cinema mudo perdido, com o seu curioso projecto interactivo SEANCES2, é o exemplo mais mediático deste "desenterro" de memórias e estéticas cinematográficas.



De um ponto de vista pessoal — portanto, inteiramente subjectivo e sujeito a refutação de qualquer ordem —, e com raríssimas excepções3, a figura do remake revela-se como uma cópia de talentos originais e/ou apropriação de distintas sensibilidades culturais, numa específica incapacidade de produzir novos títulos sem escapar à "âncora" de correntes artísticas do passado. Em última análise, é um sintoma total de preguiça criativa.

No entanto, a mecânica dos remakes cinematográficos, quando aplicada a títulos cujo paradeiro fílmico é impossível de localizar, suscita uma série de interrogações historiográficas, teóricas e, até, éticas, que o artigo da Sight & Sound falha por omissão em sublinhar, mas que importa reter para debate.

Será o remake de filmes perdidos algo mais do que um mero exercício de reverência a imagéticas do passado que o tempo não tratou de preservar? Que novas pistas podem estas "revisões" trazer para a análise dos percursos de autores e intérpretes de obras desaparecidas? E quais os seus benefícios para a actividade dos historiadores e das instituições museológicas que cuidam da busca por lost films?



Um aspecto digno de registo em torno desta questão, e tendo por base casos particulares de remakes de filmes perdidos, prende-se com a própria origem criativa destes projectos. Relativamente à grande maioria dos títulos referenciados como desaparecidos, muito pouco sobrou até aos nossos dias. Amiúde, nem um único fotograma existe ao nosso dispor, que permita vislumbrar pormenores como a caracterização de personagens, direcção de fotografia e cenografia. É, portanto, frequente que as únicas fontes existentes sejam breves sinopses, recortes de imprensa da época e memórias escritas de personalidades que tiveram o privilégio de visualizar um filme agora perdido ou trabalhos biográficos.

Todavia, na afortunada possibilidade de haver um guião de rodagem para consulta, ou na existência de, pelo menos, alguns metros duma cópia em nitrato, não podemos negar o quão tentador — e intrigante, reiteramos o adjectivo — será fabricar uma nova versão de um filme perdido. No entanto, é-nos evidente que tal recriação nunca conseguirá suplantar a experiência da (re)descoberta do objecto original, nem do desafio, quase arqueológico, da pesquisa histórica, do percorrer de armazéns arcaicos e de conferir nova vida a bobines que o tempo furtou ao nosso conhecimento.

Seguindo esse raciocínio, também se revela claro que o remake dificilmente se assumirá como coadjuvante para a descoberta de uma obra perdida. Consequentemente, os remakes de, por exemplo, THE MOONSHINERS (1907) ou VITA FUTURISTA (1916)4 não passam de curiosidades, meros produtos de imaginação moderna, mas eficazes na lembrança de uma herança cinematográfica cujo paradeiro físico (ainda) nos escapa.



O Cinema assume-se, assim, e parafraseando Jacques Derrida, como "uma arte de fantasmas", de que os filmes considerados perdidos são as suas "presenças espectrais" mais relevantes. A este propósito, voltamos a Guy Maddin, autor de uma filmografia sempre "assombrada" pela estética do filme mudo — e de que SEANCES é exemplo primordial —, para destacar a forma como, melhor do que ninguém, conseguiu definir a essência do filme perdido:

I've always considered a lost film as a narrative with no known final resting place, doomed to wander the landscape of film history, sad, miserable and unable to project itself to the people who might love it.5

A memória, mesmo aquela relativa ao que não conseguimos visualizar hoje em dia, é o espírito e a matéria do próprio Cinema. E para esta realidade, não há reconstituição de filmes perdidos que supere a memória da Sétima Arte.

Notas:
1 Escritora e crítica de cinema freelancer, colabora frequentemente na Sight & Sound, o The Guardian, a Radio 4 e a Little White Lies, entre outras publicações.
2 Projecto que agrega a recriação de vários filmes considerados perdidos (entre os quais, contam-se títulos como THÉRÈSE RAQUIN de Jacques Feyder, RAUSCH de Ernst Lubitsch, RESURRECTION OF LOVE de Kenji Mizoguchi ou LADIES OF THE MOB de William Wellman). Muitos destes trabalhos podem ser visualizados em THE FORBIDDEN ROOM, realizado pelo próprio Guy Maddin.
3 SCARFACE, de Brian De Palma a partir do original de 1932 dirigido por Howard Hawks, é decididamente um dos filmes da minha vida.
4 Títulos seminais do Cinema Mudo finlandês e italiano, respectivamente, e que foram alvo de remake: o primeiro por Juho Kuosmanen, em 2017, o outro em 2009, sob o título FUTURIST LIFE REDUX.
5 Citado de THE 1000 EYES OF DR. MADDIN (2015, Yves Montmayeur).

Imagens:
1 Fotograma de uma das curtas-metragens integrantes do projecto SEANCES, de Guy Maddin, Evan e Galen Johnson.
2 Fotograma de uma das curtas-metragens integrantes do projecto SEANCES, de Guy Maddin, Evan e Galen Johnson. Senses of Cinema.
3 Fotograma de SALAVIINANPOLTTAJAT, o remake de 2017 de THE MOONSHINERS. barbican.org.
4 Fotograma de VITA FUTURISTA. Avvenire.

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